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sábado, 3 de novembro de 2018












                                    Veleiro brigue, túmulo errante, onde vais por este espaço tormentoso? Oh, quisera eu, pelo sol, ser abrasada ou dilacerada pelas feras, minha terra. Oh doces sonhos. Que música suave ao longe soa! Olokun me valha, valei-me senhor dos mares, serenai as vagas procelosas. Ouvir o som. Os atabaques. Que me dizem eles? Irôko, Loko, eró, eró, Tempo, Tempo, Tempo, dai-me teu consolo.

quinta-feira, 11 de outubro de 2018













                                Valha-me Deus, senhor São Bento. Eu vou cantar meu barravento. Valha-me Deus, senhor São Bento. Buraco veio tem cobra dentro. Valha-me  Deus, senhor São Bento, quando se vê cobra assanhada. O som do berimbau soa distante. Corre savanas. Vejo gente correndo atrás de irmãos, de flecha na mão. Cães latindo danadamente. Aqui passa uma jovem em abalada, seguida por uma matilha ensandecida. Os cães não sabem o que fazem, estão a mando de alguém. Para não ser dilacerada pelos caninos, ela sobem numa árvore. Os cães latem lá embaixo, ela segura firme no galho mais alto. Alguns dão pulos tentando subir na árvore, mas felizmente não conseguem. Ficam latindo até chegarem aqueles que a aprisionarão.
                                       

sábado, 22 de setembro de 2018













                               Estou desconfiado de quem me rodeia. Não sinto amizade, parecem movidos a interesse. É uma ajudinha aqui, outra acolá e no fim do mês o baque é muito grande. Tenho de livrar destas pessoas. Como fazer? De vez em quando preciso de alguém e aí a facada é grande, não que me deixe completamente exangue, mas o tombo, meu. E você pensa que os caras se envergonham, nem um pouco. Eu me sinto explorado. Um dia, me pareceu que alguém me chamou negro boçal, mas como não tive certeza, fiz de conta que não ouvi. Só estou esperando a hora dele se manifestar novamente, aí eu serei cruel, implacável.

terça-feira, 4 de setembro de 2018













                                                Eu vim lá de Rio Bonito, Paracatu sabe? Nunca mais voltei lá, tenho medo de receber uma martelada. Afinal quem alisa os bancos da elite não pode ficar dando bandeira, voltando ao lugar de origem. Vão logo te ligar a um traficante, é por isto que os jogadores de futebol, todos saídos das favelas, não mais lá retornam. A elite não deixa. Pega mal. Aí você vira politico de direita e até nazista, principalmente se não tiver uma boa educação. Eu me salvei, pela profissão escolhida. Posso enganar mais facilmente o povão e satisfazer a elite, embora saiba que ela nunca irá me aceitar integralmente. Haverá sempre um pedaço do lado de fora que fará com que eu não entre por inteiro. Tenho certeza que numa reunião de notáveis, se um deles der um peido, todos pensarão que fui eu que peidei, mesmo sabendo que todo peido cheira a seu dono.  Eu por exemplo, conheço o cheiro de peido de todos meus amigos. Deu um, nunca mais esqueço. Ele pode voltar a peidar 20, 30 anos depois, logo digo, este é de fulano.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018













                             

                                                   E sendo eu, Geraldo, não José, o africano, fui,  em o ano de 1856, pelo valor de 550$000, vendido a Modesto Gonsalves de Meireles. Meu vendedor Antonio Joaquim de Figueredo me entregou a meu novo senhor que de mim tomou "posse maneira e pacífica".
                                       Quatro anos se passaram na labuta com este novo senhor, nem bruto, nem dócil, e, um dia, encontrando-nos a garimpar nos garimpos da Villa de Lençóis, atividade primeira de meu senhor, que nem sempre era generoso no de comer, como aliás, a maioria dos senhores, segundo me dizem os de minha cor e origem, resolvi de vontade própria, sem que me movesse qualquer outro fado, ir ao distrito policial da Villa de Lençóis e denunciar ao delegado ter sido furtado do poder de meu legítimo senhor na cidade de Santo Amaro, onde tinha vida mais amena que o sofrimento do garimpo, da seca e da fome a que me submetia meu novo senhor.

quarta-feira, 18 de julho de 2018







                       
                               

                                 Cabundá não sou. Bundá, ierê, talvez, trazendo o limbambo como troféu, orgulhoso de meu nhô. Sou vibunde sim e por isto canto alegre meu vissungo. Malungo sou de meu nhonhô. Escravo com muito orgulho. Nasci nas Minas Gerais. Nas Minas não volto mais. O martelo nunca mais. Agora é caneta, de ouro que não sou nenhum besta de usar esferográfica. Lespa! A elite está de joelho a meus pés. Vim e venci. Quem ficou na cachacinha, batendo martelo, lá está até hoje. Muitos dos meus já até morreram ou de cachaça, da polícia. Eu não tenho culpa.

terça-feira, 3 de julho de 2018













                                   
                                                  Vai, cão danado, neste caminho, que tu terás a recompensa, atroz será, espera apenas, descubram tua perfídia. Esqueceste o pesado malho, logo tenhas pegado uma caneta. Os teus não te esquecerão. Vai, quero ver chegares. Não irás a lugar nenhum. Não te enganes. Não penses que o senhor que ver seu antigo escravo, ombro a ombro nas quermesses. Não penses que ele te fez homem, para seres homem, querem-te apenas um escravo especial, com mais habilidade que os outros, para fazeres o trabalho sujo que eles não querem fazer. 

segunda-feira, 2 de julho de 2018














                                                           E tendo eu pegado dum quicé, acharam, eu, um moleque, iria fincar ela em carne alheia. Eu sou de paz, malungo sou de todos. Não me queiram mal. Pra cortar o fumo, um cigarrim pra pitar. Gosto de pitar. Descansar o martelo, cansado de malear. Não me acuse de mucua-quituxe, só porque não sou soba, mas simples monangamba. Chega de criminalizar a pobreza, paciência tem limites. 


sábado, 2 de junho de 2018













                                                         E os filhos de Arão, Nadabe e Abiú tomaram cada um o seu incensário e e puseram neles fogo e colocaram incenso sobre e ofereceramfogo estranho perante o Senhor, o que não lhes ordenara.
                                                 Então saiu fogo de diante do Senhor e os consumiu; e morreram perante o Senhor. Aqui o Senhor no Levítico, 10, 1, 2,  que é só de Israel, porque não merecemos Deus tão atroz. Mata de graça a dois pobre coitados.
                                                Eu me chamo Mahommah Gardo Baquaqua, Djougou é minha terra, no Benin. Poderias tu ter vindo, também, de lá? Não, não tens a mesma têmpera. Demasiado, conformista, eu diria, até puxa-saco. Por isto chegaste onde chegaste, vendendo tua alma ao branco, pisando os de tua raça, os de baixo, lambendo as botas dos de cima.
                                            Hoje te vejo nesta empáfia, como te enganas. Achas mesmo que uma sociedade racista, elitista iria te aceitar?                        
                                                 O que fizeram? Te utilizaram à exaustão e depois te jogaram no ostracismo. Em vão tentas botar a cabeça fora, mandando um tuíte, outro acolá. Eles estão cagando para teus tuítes.


domingo, 25 de fevereiro de 2018

NAVIO NEGREIRO

     










                                                         





                  'Stamos em pleno mar, singra-o, de negros, carregado, o veleiro brigue d´Aarão Lopes, cristão novo português, agiota e mercador de gente, trocada por miçangas, em terras africanas. Donde vens?  Que destinos tomarás? Onde aportarás com tua infame carga? Aarão, Aarão já vendestes bastante negros para teres teu nome inscrito no livro dos algozes? E há ainda quem te apoia neste ato desumano?
                 ´Stamos em pleno mar. Que mar infindo nos separa? Deste tumbeiro, longe, bem distante, ouço os djembés de meus irmãos. Mandam notícias para quem já está no cativeiro em terras de América. Quem nos vendeu, não tem dó, eles também acham que não somos gente, mas os nossos choram nossa partida. E nós, inda bem, não chegados, inda em pleno mar imenso, já tomados pelo banzo. Até quando suportaremos esta dor? 


'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço  
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...
'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...
'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...
Donde vem? onde vai?  Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.
Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!
Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!
Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!
Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................
Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!
Albatroz!  Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz!  Albatroz! dá-me estas asas. 
II

Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.
Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!
O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!
Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu ...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu! ... 
III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror! 
IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
          Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
          E ri-se Satanás!...  
V

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são?   Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .
São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...
Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ... 
VI

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio.  Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!
(Castro Alves)